A ideia de Deus como um “pastor”

O salmo 23 é um dos mais conhecidos da Bíblia pela fé que suas palavras transmitem ao leitor, proporcionando conforto e segurança para quem espera em Deus. Em seus seus versículos, o poeta descreve a solicitude divina para com os justos através de duas imagens, apresentando o Eterno como um pastor (versos 1 a 4) e também como um anfitrião que oferece um banquete a um convidado de honra (versos 5 a 6).

A princípio, para que possamos melhor compreender a ideia de Deus como um pastor, é importante nos familiarizarmos mentalmente com o meio ambiente seco da Palestina onde o salmista teria composto o seu belo poema no idioma hebraico. Pois, aqui no Brasil, em quase todas as nossas religiões onde a vegetação e a água costumam ser abundantes para a agropecuária (exceto o sertão nordestino), pode-se dizer que as ovelhas cuidam de si mesmas ficando soltas no pasto. Porém, em lugares semiáridos como são a nossa Caatinga e mais ainda o Oriente Médio, a presença do pastor é indispensável já que, por diversas vezes, é preciso conduzir o rebanho por horas pelas paisagens desérticas até encontrar água e pasto verde para os animais.

Sem dúvida que, nestes locais secos e de criação extensiva, as ovelhas acabam desenvolvendo uma relação de confiança em relação ao pastor, passando até a reconhecer a voz de quem lhes guia e protege. Pois, sem o pastor, as dóceis e domesticadas ovelhas simplesmente vagariam sem rumo pela hostilidade do ambiente desértico até morrerem de fome, sede, frio ou serem atacadas por um predador. Por isto, esses animais indefesos não seguem a nenhum outro que não seja o verdadeiro cuidador.

Para a história do povo israelita, guiado pelo deserto do Sinai após o êxodo egípcio, a imagem de Deus como pastor torna-se algo de fácil identificação cultural. De acordo com a Torá, os filhos de Israel viveram 40 anos sob a proteção do Eterno num ambiente. Foram milagrosamente protegidos do sol forte através de uma nuvem (durante o dia) e aquecidos por uma coluna de fogo (à noite), além de receberem o maná como alimento de domingo à sexta-feira com porção dobrada neste dia da semana para que não laborassem no Shabat. É como relata poeticamente o livro de Neemias num re-exame pós-exílico da lei mosaica:

“Todavia, tu, pela multidão das tuas misericórdias, não os deixaste no deserto. A coluna de nuvem nunca se apartou deles de dia, para os guiar pelo caminho, nem a coluna de fogo de noite, para lhes alumiar o caminho por onde haviam de ir. E lhes concedeste o teu bom Espírito, para os ensinar; não lhes negaste para a boca o teu maná; e água lhes deste na sua sede. Desse modo os sustentaste quarenta anos no deserto, e nada lhes faltou; as suas vestes não envelheceram, e os seus pés não se incharam.” (Ne 9.19-21; ARA)

Ora, ninguém precisa acreditar literalmente na ocorrência desses fenômenos. Toda a jornada de travessia dos israelitas pelo deserto é uma imagem da orientação do homem pela Torá em sua caminhada. Significa sermos guiados e cuidados por Deus na trajetória de vida através de uma experimentação mística, relacionando-se também com o aspecto coletivo e não se restringindo somente ao individual.

Voltando ao Salmo, cuja autoria é atribuída ao rei Davi, tem-se logo no começo o incentivo á confiança de que Deus irá suprir totalmente o seu “rebanho”, conhecendo as necessidades fundamentais das “ovelhas” melhor até do que elas mesmas. Então, tudo o que elas realmente precisam o Pastor irá lhes proporcionar ainda que nada Lhe seja pedido. E, como se vê, a grama não é seca, mas fresca, adequada para o animal deitar e repousar. Também as águas, ao invés de serem agitadas, são tranquilas e seguras, permitindo a ovelha saciar sua sede.

Tal cenário bíblico dos versos 1 e 2 parecem até a habitação celestial descrita no Apocalipse sobre a Nova Jerusalém. Porém, não é propriamente sobre o futuro que o salmista está falando, mas sim do conforto recebido no presente, capaz de levantar seus ânimos em meio às lutas do cotidiano. Assim, quando o versículo 3 fala em refrigério para a alma, certamente podemos entender isto como uma restauração das nossas forças espirituais em Deus. Isto porque é o Eterno quem sustenta a nossa vida pela sua Torá (orientação), dando-nos mais do que pão para o estômago.

A Palavra de Deus, a qual também podemos entender por “instrução” (vocábulo mais adequado do que “lei” para traduzir Torá no nosso idioma), é também o caminho de justiça pelo qual a ovelha é guiada. Ou seja, quando permitimos que o Eterno nos dirija, podemos alcançar a verdadeira paz através de uma tranquilidade e de uma serenidade no nosso interior.

A esse respeito, a Bíblia é riquíssima em exortações. Os mandamentos divinos são orientações dadas aos homens para que todos possam viver bem e em harmonia com o Universo. Isso encontra-se explícito nos cinco livros da Lei de Moisés, no Salmo 1º que fala dos caminhos do justo e do ímpio, além de inúmeros outros poemas, provérbios e advertência dos profetas:

“Filho meu, não te esqueças dos meus ensinos e o teu coração guarde os meus mandamentos; porque eles aumentarão os teus dias e te acrescentarão anos de vida e paz. Não te desemparem a benignidade e a fidelidade, ata-as ao pescoço; escreve-as na tábua do teu coração e acharás graça e boa compreensão diante de Deus e dos homens. Com fia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas. Não sejas sábio aos teus próprios olhos; teme ao SENHOR e aparta-te do mal; será isto saúde para o teu corpo e refrigério, para os teus ossos.” (Pv 3.1-8; ARA)

Assim como um homem honrado cumpre com a sua palavra, mais ainda a instrução do Eterno não pode falhar e Ele nos conduzirá em paz pelos caminhos da vida. Tal como a gravidade atrai o corpo ao chão, os mandamentos divinos são leis que regem metafisicamente o Universo. E aí, reverenciar a instrução torna-se o primeiro passo para alcançarmos a sabedoria interior.

Na sequência, o salmista fala sobre a ausência de receio ou de temor do mal caso viesse a andar “pelo vale da sombra da morte”, o que traduz o apoio de Deus nos nossos momentos de adversidade. Segundo o teólogo congolês Nupanga Weanzana, doutor em estudos do Antigo Testamento pela Universidade de Pretória, África do Sul, a referida expressão poderia ser um local de perigo onde as ovelhas fossem vítimas de animais selvagens “ou um vale íngreme que o rebanho precisava escalar ao se deslocar de um pasto para outro” (Comentário Bíblico Africano, pág. 639). Para ele, esta imagem também lembra a experiência de Israel em sua jornada espiritual pelo deserto do Sinai fazendo uma referência a um trecho do verso 6 do capítulo 2 do livro de Jeremias que assim diz: “e sem perguntarem: Onde está o SENHOR, que vos fez subir da terra do Egito? Que nos guiou através do deserto, por uma terra de ermos e de covas, por uma terra de sequidão e sombra de morte, por uma terra em que ninguém transitava e na qual não morava homem algum?”

Aduza-se que o “vale da sombra da morte” poderia significar também uma descrição negativa do reino dos mortos que os antigos hebreus construíram em seu imaginário coletivo. Tanto é que Jó, no auge do seu desespero, chegou a pedir para Deus deixá-lo em paz antes de partir “para a terra das trevas e de sombra da morte” (ver Jó 10.20-22). Só que para o salmista não importaria por onde ele caminhasse porque a presença envolvente do Eterno seria suficiente para protegê-lo e ampará-lo nas diversas situações.

Sinceramente, eu não vejo outra maneira de viver plenamente saudável senão através da fé.

Quando colocamos a nossa confiança em Deus, sem reservas, nenhuma situação vai nos amedrontar. É claro que não estamos isentos de sofrer com as más notícias, perdas e acontecimentos ruins porque somos humanos, não de ferro. Contudo, no momento em que tomarmos consciência da Divina Providência operando a nosso favor, passamos a desfrutar da doce paz do Eterno em nossos corações mesmo que tudo esteja desabando ao nosso redor.

Nessas horas precisamos nos lembrar bem do “bordão” e do “cajado” de Deus, instrumentos com os quais os pastores traziam de volta a ovelha desgarrada e protegiam o rebanho do ataque das feras do campo. Pois, caso um lobo surgisse repentinamente, o cajado seria capaz de afugentar o predador e até mesmo evitar uma aproximação.

Bendito cajado!

Quer nos desviemos ou passemos por dificuldades, certamente o Eterno não nos abandonará porque Ele ama o seu povo. A sua proteção e a sua provisão jamais nos faltarão. Logo, devemos prosseguir confiantes, sabendo que um banquete espiritual aqui e agora nos aguarda. E que bondade e misericórdia vão nos acompanhar todos os dias de nossas vidas, tendo em Deus o nosso lar eterno, com quem estaremos para sempre unidos.

Uma boa semana e que possamos deixar Deus nos conduzir e nos saciar completamente. Segue aí um excelente vídeo encontrado no Youtube com o Salmo 23 cantado na língua hebraica:

OBS: A imagem acima trata-se da obra "O Bom Pastor", mosaico no Mausoléu de Galla Placidia, Ravenna, datado da primeira metade do século V da era comum. Já a segunda ilustração seria uma retratação do Salmo 23 da versão King James de 1880 em que ó provável autor talvez seja Edward Evans (1826-1905).

Comentários

  1. Rodrigão vc disse "Sinceramente, eu não vejo outra maneira de viver plenamente saudável senão através da fé", eu diria:

    "Sinceramente, eu não vejo outra maneira de viver plenamente saudável senão através do equilíbrio entre "A FÉ E A RAZÃO".

    ResponderExcluir
  2. Prezado Franklin,

    Concordo com você!

    Uma vida com fé não exclui a razão.

    Acredito que, se Deus nos fez seres racionais e nos dotou de inteligência, é porque Ele quer que usemos esta funcionalidade da mente. E tenho dúvidas se ambas (razão e fé) seriam o tempo todo opostas.

    Também observo que, quando a fé é contrastada com a razão, ela amadurece porque tomamos decisões refletidas e até mais desafiadoras se não fôssemos testados também pela razão.

    Se Abraão, o "pai da fé", tivesse dado ouvidos apenas à razão, jamais teria deixado a Mesopotâmia.

    E, se a razão não fizesse parte de sua vida, a sua fé não precisaria ter sido tão grande porque ele não iria se sentir desafiado com o passar dos anos em que o descendente prometido demorava a chegar. Tanto é que Abraão, em vários momentos, foi tentado e até se desviou do caminho descendo de Canaã ao Egito e acreditando que o descendente prometido seria Ismael e não Isaque.

    Curioso, mas o homem que teve uma das maiores fés também cometeu também grandes incredulidades e foi justificado diante de Deus. Quando lhe faltou fé, triunfou a graça do Eterno.

    ResponderExcluir
  3. Rodrigo,

    Teu texto inspirador mereceria estar em qualquer Devocional cristão de alta qualidade. Acho muito bonito essa imagem de Deus como pastor do seu povo. Pastor que guia, que leva ao caminho certo e que busca quem quer que se perca e se fira durante o percurso.

    Acredito também que a Bíblia é o maior livro existencial que existe. Apesar de muitos dos seus livros focarem o porvir, a mensagem que me salta aos olhos é exatamente as que falam de como viver no "ca-vir"(desculpe o neologismo teológico horrível).

    Mas se eu entendi bem, você propõe uma contradição nessas frases:

    "Ora, ninguém precisa acreditar literalmente na ocorrência desses fenômenos. Toda a jornada de travessia dos israelitas pelo deserto é uma imagem da orientação do homem pela Torá em sua caminhada"

    Não estaria ela em contradição com

    "Isto porque é o Eterno quem sustenta a nossa vida pela sua Torá (orientação), dando-nos mais do que pão para o estômago.

    Se eu tomar a narrativa do Êxodo como simbólica, eu também não devo tomar como simbólico o fato do Eterno me sustentar pela sua Torá e me proporcionar mais do que o pão material?

    Como eu poderia resolver essa contradição?

    Veja, quem está vendo contradição sou eu, você talvez não a veja pelo seu modo de ter fé.

    E eu concordo também com a frase curta e grossa e cheia de conteúdo do KILIM, fé sem razão é fideísmo, razão sem fé, é materialismo.

    Eu não pensava assim há uns tempos, mas hoje, creio, devemos procurar conciliar a fé com a razão. Ou a fé e a ciência. Ou a espiritualidade e a ciência.

    ResponderExcluir
  4. Rodrigo,

    Esqueci de comentar: o vídeo é muito bonito!!

    Shalom

    ResponderExcluir
  5. Caro Edu,

    Inicialmente muito obrigado pelos seus incentivos e elogios quanto ao meu texto. E concordo com o seu neologismo porque de fato a mensagem bíblia aponta para vivermos no aqui e agora em que isto esvazie a esperança de futuro. Aliás, quando o Eterno é o nosso Deus, não temos mais um futuro para nos preocupar porque a eternidade passa a integrar o nosso presente, salvando-nos das chamas que consomem todas as coisas, conforme muito bem ensina o budismo.

    Agora, respondendo sua dúvida, confesso que não consigo ver contradição. Talvez eu não tenha sido suficientemente claro. Quando disse que "ninguém precisa acreditar literalmente na ocorrência desses fenômenos", eu estava me referindo aos milagres contidos nas narrativas como a abertura do Mar Vermelho, o maná, as colunas de nuvem e de fogo, as vitórias militares dos israelitas, as 10 "pragas" do Egito, dentre outros episódios que compõem a "casca" da Torá, de acordo com a interpretação cabalística do Zohar.

    Assim, eu quiz dizer que os milagres ocorridos na jornada dos israelitas foi mais ilustrativo, compondo um veículo imagístico para a transmissão de ensinamentos profundos que tornam a crença mitológica dispensável quando mergulhamos na essência da instrução.

    Assim, as colunas de nuvem e de fogo representam, na verdade, a própria direção da Torá na vida do homem. Pois quem segue interiormente a Torá será guiado com segurança até encontrar "pastos verdejantes".

    Numa comparação do Judaísmo com outras religiões, poderíamos dizer que a Torá corresponderia ao Tao, sendo ela a manifestação do próprio Deus. Ela não corresponde a nenhum escrito ainda que a Lei de Moisés tenha sido um registro do que os homens pensaram que fosse a Torá.

    Numa análise não apologética do Evangelho de João, poderíamos dizer que a Torá seria o portal das pastagens (Jo 10.7,9). Assim, percebe-se que o ensino original não estava baseado numa cristolatria tola no qual a Igreja acabou seguindo, mas sim no encontro íntimo de cada um com este portal dentro de si mesmo, deixando de lado o autoengano que, no texto joanino, seria o "estranho" (Jo 10.5). E, se o engano nos rouba, mata e destroi, a Verdade da Torá nos proporciona vida e vida em abundância.

    Neste sentido, as palavras do racionalista Maimônides complementam esta ideia: "A Torá é verdade, e o objetivo de conhecê-la é viver segundo ela".

    Shalom!

    ResponderExcluir
  6. Parabéns Rodrigo, pela bela releitura do salmo 23


    “O senhor é o meu pastor e nada me faltará” – essa frase do poeta Davi, tão repetida no mundo cristão, tem um significado psicológico profundo.
    Antes de ser rei de Israel, Davi cuidava do rebanho das ovelhas de seu pai. Foi observando o modo das ovelhas se comportarem frente a ele, que o levou, poeticamente, ao nobre sentimento de RELIGAR-SE com a IMAGO PATERNA internalizada no inconsciente.

    No Salmo 23, o poeta Davi passa, no seu imaginário, a se sentir como uma ovelha, perante o que Freud denominou de “superego” . O poeta, como ninguém, sabe sublimar o “real” em sua imaginação. Ele, como pastor deve ter observado com extrema acuidade as ovelhas se regalando em verdes pastos, sendo guiadas por ele às águas de um lago que exalava paz e tranqüilidade.

    Davi, com certeza, em seu pastoreio, livrou as ovelhas de seu pai dos lobos famintos, e agora estava ali, talvez angustiado ante a sanha dos seus inimigos a corroer as suas entranhas, na condição de uma ovelha desgarrada a pedir proteção ao Pai (Imago paterna).

    Só mesmo um poeta pode mergulhar no poço profundo de sua psique para fantasiar a sua solidão e ser consolado. O poeta é aquele que primeiro imagina, sonha, para depois passar seus versos para o papel.

    Davi, nesse canto poético se via na pele da ovelha do rebanho que tomava conta, pedindo apoio ao pastor, pai ou provedor imaginário, figura representativa de seu pai natural que com o seu “cajado” (metáfora que significa - ensinar o caminho) e sua “vara” o guardava.

    Com relação ao significado da metáfora VARA, o Velho Guimarães Rosa dá uma interpretação inusitada, que cai bem no pensamento desse que foi um poeta segundo o coração de Deus, em outras palavras: um poeta que se expressava segundo o seu inconsciente :


    “Um boi preto, um boi pintado,
    cada um tem sua cor.
    Cada coração um jeito
    de mostrar o seu amor.
    Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na VARA, vai não volta, vai VARANDO...”

    ResponderExcluir
  7. Rodrigo,

    Belíssima reflexão. Ótima sugestão musical!

    Nessa oportunidade gostaria de fazer apenas um adendo:

    O salmo 23 analisado com a lente da interpretação oriental, tem um sentido bem diferente das traduções para o nosso idioma. Tradução esta que instiga o leitor a fazer uma leitura com o sentido de um utilitarismo típico da cultura ocidental. Por esta razão, acredito que este Salmo, além de ser o texto mais conhecido das escrituras, é também o mais mal entendido dentre todos. Sem contar nas obvias contradições que surgem a partir de uma interpretação literal.

    O verso primeiro é um exemplo clássico dessa mudança de sentido. Veja a tradução literal do texto na forma que está no original hebraico:

    Falta sentirei, não, meu guiador é, O senhor
    ‘echsâr lo’RO` iy Adonay

    Na interpretação oriental, dá-se a ênfase na “presença do pastor” e vê-se a “providência” como conseqüência dessa “presença”. Já a filosofia ocidental, como interesseira que é, inverte as bases, pois dá uma conotação à “providência” como ênfase primária daquele que é pastoreado, e a presença do “Pastor” passa a ser “coadjuvante” num cenário de expectativas de uma ovelha, necessitada de todas as circunstâncias favoráveis para sobreviver.

    As vezes o texto em nossa língua pode dar um sentido que o texto original não dá, e o equívoco interpretativo desse primeiro verso compromete todo o restante do Salmo. O princípio utilitarista tem sentido a luz das campinas verdejantes, dos lagos tranqüilos, dos banquetes servidos na cara dos inimigos etc...
    Mas toda essa estrutura desaba quando se anda pela estrada que atravessa o vale da morte. Quando a única valência é a presença do “Pastor”.

    Abraços!

    ResponderExcluir
  8. Edu,

    Gostei do seu neologismo. Entra como uma luva em algumas argumentações. Vou começar a utilizá-lo.
    Ora, se Heráclito inventou o "de-vir" porquê o Edu não pode inventar o "ca-vir"? Já que o português é uma língua viva e dinâmica, porquê não enriquecê-la ainda mais? rsrsrsr

    ResponderExcluir
  9. Donizete

    Concordo com o trecho do seu comentário, abaixo:

    “Mas toda essa estrutura desaba quando se anda pela estrada que atravessa o vale da morte. Quando a única valência é a presença do “Pastor” (ou Imago Paterna – grifo meu)

    Na psique do recém-nascido a autoridade primária é a Paterna. Na concepção do filósofo e psicanalista Didier Anzieu, o organizador do inconsciente é a ”imago paterna ambivalente”, isto é, a imagem de um pai percebido ora como “bom”, ora como “mal”. Afinal, é o Pai quem NOMEIA o Filho.

    A relação do homem com Deus, segundo Freud, é uma reedição da relação do homem com seu pai, ou tutor primordial.

    O vínculo com Deus, como assinala Ricoeur, é que permite ao homem, recuperar a intimidade de suas relações com o pai primitivo. Seu sentido oculto é a perpétua nostalgia do pai.

    É na infância, que a ambivalência e a contradição, começam a fazer parte intrínseca de nossa relação conturbada com o pai. Às vezes encontramos abrigo na relação com ele, outras vezes sentimos o peso de sua hostilidade como um abismo a querer nos tragar.

    Abraços,

    ResponderExcluir
  10. Perfeita sua análise Levi!

    Na fase adulta não encontramos mais essa ambivalência na relação com nosso pai. Mas segundo suas palavras, ela continua em nosso inconsciente.

    Mas Levi, suponhamos que o indivíduo não possua essa concepção de um Deus ambivalente. Mas que é absolutamente amor. E que, a leitura que ele faz do fato de estar atravessando o vale, seja apenas contingências, e não uma intervenção de Deus; assim mesmo, no seu inconsciente ele tende a associar a imagem paterna?

    Abraços!

    ResponderExcluir
  11. Rodrigo, gostei muito do texto.
    Gosto muito desse salmo que aprendi em forma de hino, pois minha mãe na juventude participava do coral da igreja batista e havia um modo de cantar esse salmo que me lembro era muito bonito. As palavras iniciais "O Senhor é meu pastor, e nada me faltará." me acompanharam na infância e adolescência, mesmo antes de entrar para igreja e eu o usava meio como um amuleto, antes de provas, em momentos de pavor, tristezas. Nele, temos a sensação de uma proteção completa, de dependência e segurança.
    Gosto especialmente do trecho: "Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, sei que tu estás comigo." O que eu compreendo é que apesar de termos Deus como nosso pastor atravessaremos momentos difíceis, mas que serão amenizados por sua presença.

    Um abração. Fica com Deus.

    ResponderExcluir
  12. “Na fase adulta não encontramos mais essa ambivalência na relação com nosso pai. Mas segundo suas palavras, ela continua em nosso inconsciente” (Donizete)

    A memória da presença tutelar paterna e materna fica registrada em nossa psique, como o primeiro modelo de não estar só. Lá no fundo, somos eternas criancinhas impotentes à procura de segurança, desconstruindo a ordem das coisas, escalando montanhas, mexendo em tudo, procurando preencher o vazio de primeiro desamparo para além dos limites conhecidos no afã de fugir da solidão.

    “Durante muito tempo, quando éramos crianças, recebíamos o apoio de nossos pais naturais ou substitutos. O comportamento desses co-viventes, desses nossos tutelares forjou-nos e informou-nos de modo indelével em sua caracterização diária, tanto em termos de estrutura como de linguagem” — disse a psicanalista Françoise Dolto, autora do livro - “Psicanálise dos Evangelhos”

    A Parábola do Filho pródigo, mostra de forma metafórica o antagonismos dos nossos desejos: o desejo de querer ficar (simbolizado no filho mais velho da parábola) e do querer sair (o filho mais novo da parábola).
    Na bela poesia (salmo 23) temos um exemplo da ambivalência dos nossos afetos: o poeta Davi, sabe que a ovelha deve andar pelo caminho (simboliza o anseio de obedecer ao arquétipo patriarcal), mas, se vê como a ovelha, desgarrada (metáfora do desejo de agir e caminhar por conta própria). Quando pede ao Pai para preparar uma mesa na presença dos seus inimigos, brilhantemente, ele faz menção a uma “unção” que seria o passo decisivo dado para humanização ou síntese dos desejos antagônicos. Sentar-se à mesa com um grupo de estranhos, tem um emblemático significado, que é o de promover a tolerância entre vizinhos desconfiados (metáfora de integração psíquica dos desejos opostos).

    Graças ao restaurante “Ágape”, o medo do estranho que existe em nós, diminuiria. A essência dessa CEIA seria no sentido de equilibrar rico com pobres, patrões com empregados, ortodoxos com seculares.
    Enfim, "preparar uma mesa na presença dos meus inimigos", seria a realização da SÍNTESE entre os desejos opostos, naquilo que Jung, denominou de processo de individuação

    ResponderExcluir
  13. Meus amigos,

    Fico feliz pelos comentários recebidos de vocês e também pelos elogios e incentivos.

    Hoje tá difícil comentar detalhadamente as interessantes colocações acima colocadas. Estou viajando a trabalho e minha semana está bem tumultuada.

    De qualquer modo, fiquem à vontade para expor suas opiniões, críticas e ideias acerca deste Salmo que é muito debatido nos mundos cristão e judeu.

    Muito obrigado pela participação de todos!

    Abração.

    ResponderExcluir
  14. Levi e Doni

    Acho muito interessante a leitura psicanalítica da Bíblia, mas temo que ela deixe passar outros significados que estão no texto em seu contexto histórico e religioso.

    Levi, perdoe-me a audácia, mas por exemplo, não vejo que a mesa preparada perante os inimigos de Davi seja inconscientemente o desejo de repartir o ÁGAPE, muito pelo contrário.

    Veja por exemplo, o comentário de André Chouraqui na sua monumental obra "A Bíblia" (vários volumes) onde traz comentários ao texto traduzido quase que literalmente a partir do hebraico:

    verso 5:

    "Dispões em faces de mim uma mesa
    diante de meus opressores;
    perfumas minha cabeça com óleo,
    minha taça está repleta".

    O comentário é:

    "O poeta cessa de se descrever como um cordeiro num rebanho. Doravante ele é o hóspede da casa de Iavé, que age em relação a ele como a um convidado bem-vindo.

    Uma mesa. A dignidade real prometida a David.

    diante de meus opressores Agora impotentes para prejudicar-me, já que estou sob a proteção de Iavé, em sua morada.

    Então, nobre colega freudiano, essa leitura pode ser compatível com a interpretação psicanalítica?

    ResponderExcluir
  15. Doni,

    li seus comentários na postagem anterior e são soberbos. Sério. Mas discordo deles...heeeeeee só pra variar...vamos deixar essa prosa para outra oportunidade ou você quer continuar nosso debate por lá?

    ResponderExcluir
  16. Edu


    Essa leitura de Chouraqui é a leitura judaica ortodoxa, que exclui o inimigo como se ele não fizesse parte inerente da psique humana.

    A leitura psicanalítica é mais inclusiva, uma vez que traduz as metáforas ambivalentes amigo-inimigo, senhor-súdito, pastor-ovelha como os afetos aparentemente paradoxais de nossa psique.

    A todo tempo percebemos a parábola do pai e seus dois filhos feita por Cristo, se passar dentro de nós. Ora nos comportamos perante o superego com temor, ora deixamos o superego pra lá e saímos para satisfazer todo tipo de desejo reprimido. Ora nos arrependemos perante o superego (pai). Ora nos surpreendemos como o próprio superego nos aceitando sem cobrar nada.

    Para a psicanálise, é em torno da MESA que nos familiarizamos com os nossos inimigos internos. Ali, é o local apropriado onde os relatos de medo, culpa, cólera, melancolia, infidelidade, dúvidas, fragilidades, enfim de nossa insanidade coletiva são confrontados. As conversas em torno da mesa, ao nos libertar de algumas de nossas fantasias mais distorcidas a respeito dos outros, nos fazem chegar ao verdadeiro “Ágape”.

    Lá no finalzinho do Livro de Jó, que eu tenho como o livro mais revelador dos elementos da psique humana, por ser justamente o livro dos “paradoxos”(rsrs), há um Ágape revelador da RE-INTEGRAÇÃÕ dos nossos afetos paradoxais:

    Jó 42, 10 : “E o Senhor virou o cativeiro de Jó quando ele orava pelos seus amigos ( e que amigos, heim?). Então vieram a ele todos os seus irmãos e todas as suas irmãs e todos quantos dantes o conheceram, e comeram com ele pão em sua casa, e se condoeram dele, e o consolaram de todo o mal que o Senhor havia lhe enviado. E assim, abençoou o Senhor o último estado (ou estágio) de Jó, mais do que o primeiro.

    Não sei se você vai concordar com esse tipo de Ágape psicanalítico interno, que tem os olhos voltados para dentro e não para fora de nós. (rsrs)

    ResponderExcluir
  17. Só pra variar ou só pra contrariar! Hein Edu! rs...

    Deixemos para a próxima oportunidade a continuação dessa "prosa"

    Até mais!

    ResponderExcluir
  18. Edu

    “Há algo de Judaico na psicanálise” (rsrs) ― já dizia Renato Mezan

    Sobre CEIA e MESA, gostaria de fazer uma alusão à expressão "Divã" - sofá sem braços e com uma grande almofada para o analisando por a cabeça, usado nos consultórios de psicanálise.

    Esse “divã” já existia em torno da MESA nas ceias judaicas e tinha quase o mesmo significado incorporado pela psicanálise. Diz o Livro “Uso e Costumes Bíblicos” - de Ralph Gower:

    “Quando o reino de Judá e Israel foram estabelecidos, os hóspedes já sentavam em torno da MESA, em cadeiras e DIVÃS. A funcão do divã é deixar o comensal mais relaxado como lugar propício à reflexão" .

    O autor desse livro diz que “provavelmente Jesus usou um destes divãs, quando seus pés foram lavados” ( Lucas 7, 46)

    Aí vai, em boa hora, trecho de um interessante artigo do nosso confrade J. Lima (rsrs):

    “Ler a Bíblia com olhar psicanalítico pode nos mostrar coisas que dificilmente perceberíamos numa leitura apenas teológica. Na leitura teológica, o leitor busca comprovar o que se crê, ou seja, ele vai para o texto com uma TESE inconsciente, na realidade ele parte de uma premissa afirmativa e vai ao texto comprovar a veracidade da premissa que crê” (J. Lima, teólogo e Mestre em Ciências da Religião, em seu artigo ― “Desamparo: O Homem em Busca de Ser Aceito”

    ResponderExcluir
  19. Levi,

    de fato parece ter alguma coisa judaica na psicanálise...rsss

    Mas deixa eu me fazer entender.

    Eu não discordo da leitura psicanalítica da Bíblia, ao contrário, acho-a bem proveitosa. Existem vários modos de se ler o texto bíblico, vários olhares. O comentário do Chouraqui procura expor o pensamento original de quem escreveu o salmo; se a psicanálise hoje diz que ele estava pondo no consciente o que estava no inconsciente é outra coisa, é o modo particular da leitura psicanalítica, que pode ser válida ou não, conforme as circunstâncias.

    É ou não é, mestre levi?? rsss

    ResponderExcluir
  20. Levi,

    outra coisa, o comentário do mestre JL é perfeito, concordo com ele. Ele diz

    " Na leitura teológica, o leitor busca comprovar o que se crê, ou seja, ele vai para o texto com uma TESE.."

    é verdade. Mas pode-se fugir disso? Mesmo procurando o sentido original do pensamento do autor bíblico(pelo método histórico, por exemplo) nossos condicionamentos interpretativos sempre vão turvar um pouco o sentido original. Mas assim também é com a leitura psicanalítica.

    ResponderExcluir
  21. Levi, muitíssima interessante também esta sua releitura psicanalista. Realmente Davi expressava-se conforme o seu inconsciente íntegro, sendo que Deus se agrada da nossa sinceridade em palavras e atitudes. Porém, hei de considerar que, quando você se refere á imago paterna, causa-me uma sensação de estar reduzindo a grandeza de Deus ao mesmo tempo que a amplia para o infinito que há dentro de nós. De qualquer modo, acho válido ressaltar que o Eterno não se encontra apenas “dentro”, mas que Ele nos contém e também a todo o Universo. Mesmo a nossa mente conter em compreender apenas uma parte da Divindade.


    Edu, como bem citou o Levi as palavras do nosso companheiro Lima, eu indagaria se a leitura psicanalista não seria um tipo de método indutivo da literatura e também da realidade humana? Verdade é que, diante de tantas incertezas textuais das Escrituras, em que o hebraico no TM encontra-se com o seu hebraico muitas vezes incompleto e de difícil compreensão que nem sempre são supridas pelo grego ou pelo aramaico, percebo que a leitura psicanalista pode nos aproximar mais da Torá verdadeira e que pode ser compreendida a partir do nosso interior. Aliás, não vejo outro ponto de compreensão para nós a não ser “dentro” e bem ou mal o leigo também faz a sua leitura psicanalista, mesmo sem os conceitos científicos usados por psicólogos. De qualquer modo, há que se ter discernimento porque como bem colocou “nossos condicionamentos interpretativos sempre vão turvar um pouco o sentido original”.


    Donizete, achei excelente esta visão que acrescentou ao nosso estudo, com a ênfase na presença do pastor e não na providência prestada à ovelha. No entanto, como diziam os velhos sábios judeus, a “Torá tem 70 faces” e aí considero que a nossa tradução ocidental harmoniza-se de certo modo com as bênçãos e as maldições previstas em Deuteronômio. Então, mostra-se compatível o acompanhamento da providência junto com a Divina Presença. Não concorda?


    Mariani, eu também lembro das palavras deste salmo como um apoio nas horas difíceis! Como nem sempre estamos dispostos a orar, recitar salmos, outros trechos da Bíblia ou quaisquer frases inspiradoras acabam sendo de grande ajuda. E aí, sem dúvida, eu respeito a tradição das religiões, sobretudo do Judaísmo (mesmo o ortodoxo), em que há prescrições de uso das Escrituras para as mais diversas situações experimentadas. Então, desde que não façamos disso um ritual vazio, acredito que os momentos difíceis poderão ser transformados em bênçãos para nós em que passamos a encontrar suficiência, alívio e encorajamento na Divina Presença. E, em alguns momentos, recordar-me de trechos da Bíblia acabam sendo de uma enorme ajuda. E não preciso nem estar no quarto orando. Bata estar na rua, caminhando ou enfrentando a minha lita diária que consigo evitar o desespero extremo. Lamento, contudo, quando não estou consciente da minha vida no Eterno diante de outras situações de inércia. Tanto boas quanto ruins.


    Um abraço a todos!

    ResponderExcluir
  22. Edu,

    O comentário de Chouraqui corrobora com a interpretação largamente disseminada nos meios evangélicos, de um certo sectarismo. De que a atuação do pastor é restrito ao seu círculo de atuação, a saber; a igreja.

    Por isso minha referência a uma atribuição utilitarista pela qual o salmo 23 é submetido.

    Particularmente, também acho por demais interessante à leitura psicanalítica dos textos bíblicos. Não deixa de ser revelador em muitos aspectos. Mas é necessário um considerável esforço por parte do leitor, para que a essência da mensagem (histórica ou pedagógica) contida no texto seja preservada.

    Outrossim, acredito que o Lima fazia referência ao leitor comum das escrituras, ou o fideísta. O teólogo que se preza, jamais deve ir ao texto bíblico com teses pré-concebidas, no sentido de apenas ratificar ou tornar válida a premissa que crê.

    ResponderExcluir
  23. Rodrigão, amo sua sensibilidade espiritual embasada na razão. Você transmite segurança, tanto por ser um teólogo com conhecimentos profundos, como porque sentimos, ao ler muitos dos seus textos, como Deus é vivo para você.

    Belíssima sua reflexão, para quem viveu e está vivendo agora, este conduzir do pastor, é fácil entender perfeitamente sua rica reflexão.

    Para mim o vale da sombra de morte, no sentido físico ou espiritual, não tenho dúvidas, que em ambos o nosso bom pastor, jamais nos deixa só.

    Vou publicar no meu blog, tá? Beijão.

    ResponderExcluir
  24. Edu, responde meu e-mail aí mano! Quando posso postar um texto aqui?!

    ResponderExcluir
  25. Guiomar,

    Muito obrigado por seus comentários, amiga!

    Pode compartilhar meu texto lá no seu site!

    Sem dúvida que nunca estamos sós, ainda que muitas das vezes nós nos abandonemos.

    Obrigado também a todos por seus comentários!

    Acho que o Franklin já pode postar seu novo texto aqui.

    Abração.

    ResponderExcluir

Postar um comentário